Meninas são as que mais sofrem com falta de investimento em políticas públicas no Brasil

Pesquisa realizada pelo Cedeca Ceará mostra como a desigualdade de gênero na juventude pode ser piorada sem políticas públicas específicas

Por Alexia Vieira

Fonte: Jornal OPOVO

A diminuição de investimentos em políticas públicas que ajudam a garantir direitos a crianças e adolescentes afeta principalmente meninas, aprofundando a desigualdade de gênero. É o que diz a pesquisa “Infância, gênero e orçamento público no Brasil” realizada pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).

O estudo analisa os dados orçamentários do País levando em conta o gênero, região, classe social, entre outros fatores. Foram constatadas reduções drásticas nos gastos com ações que funcionam em combate a problemas que tem como principais vítimas as meninas, como o casamento infantil, a exploração sexual, homicídios na adolescência e evasão escolar.

Dillyane Ribeiro, técnica responsável pela pesquisa e coordenadora do núcleo de monitoramento de políticas públicas do Cedeca, explica que o Brasil adota a Convenção de Direitos da Criança, mas não segue a observação do documento que recomenda a elaboração de orçamentos públicos priorizando o direito das crianças. “O orçamento não tem servido a isso, tem ignorado as desigualdades”.

A análise mostra que gastos com cultura, educação, direitos da cidadania e saneamento vem sofrendo diminuições desde 2016, ano de forte crise financeira. A verba destinada a políticas para crianças e adolescentes em 2018 foi de 3,57% do Produto Interno Bruto (PIB), 0,05% menor que no ano anterior. Além disso, ações orçamentárias criadas para esse público deixaram de ser executadas e tiveram recursos previstos deslocados para outras áreas.

“Isso é reflexo da falta de compromisso da política de estado. O enfoque nos direitos humanos que deveria orientar [o orçamento] vem sendo renegado”. A pesquisadora expõe que a continuidade de projetos que focam na manutenção de direitos é sempre ameaçada. Mesmo estando presentes nas leis orçamentárias aprovadas, acabam sofrendo com a redestinação de verba para áreas que “a sociedade não considera prioritárias”. Ela faz uma crítica aos portais de transparência, que não disponibilizam a informação do destino do dinheiro.

Quando o orçamento deixa de priorizar educação e saúde, para Dillyane, a assistência para meninas fica mais prejudicada. Historicamente, segundo a pesquisa, o trabalho de cuidado de pessoas foi destinado às mulheres. Familiares doentes, crianças ou idosos são majoritariamente assistidos pelas mulheres, muitas vezes de forma não remunerada. Isso faz com que esse contexto seja o mais citado por jovens de 15 a 29 anos como motivo para não frequentar a escola no Nordeste, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua da Educação de 2018.

“Precisa ter creche, ter rede de saúde. Se não, sobra mais para as meninas e mulheres que ficam encarregadas dessa tarefa”, diz Dillyane. No Ceará, assim como na maioria dos estados do Nordeste, a evasão escolar é maior entre meninas de 15 a 17 anos do que entre meninos da mesma faixa etária. As horas dedicadas a cuidados e afazeres domésticos também é maior entre crianças e adolescentes do gênero feminino na região. Por ser realizado em ambientes privados e se tratar de uma tarefa esperada das mulheres, o trabalho doméstico infantil costuma ser subnotificado, de acordo com a pesquisa.

Mesmo com este cenário, os investimentos em programas de combate ao trabalho infantil têm recebido redução nos últimos anos. Em 2014, a rubrica orçamentária denominada “Ações Estratégicas ao Enfrentamento ao Trabalho Infantil” tinha destinados cerca de R$ 70 milhões, enquanto em 2018 o valor foi de menos de R$ 10 milhões. Ações importantes do governo federal como a “Concessão de Bolsa para Famílias com Crianças e Adolescentes Identificadas em Situação de Trabalho’’ e a “Fiscalização para Erradicação do Trabalho Infantil’’ tiveram zero reais disponíveis em 2018. Com isso, a pesquisa defende que a situação precária desse grupo tende a ser agravada, perdendo direitos de viver uma infância e adolescência de qualidade.

Fora da escola e em ambientes hostis de trabalho, as meninas podem entrar em contato ainda com outras vulnerabilidades, como a exploração e violência sexual e o casamento precoce, que também são estudados na pesquisa. Outro ponto levantado pelo estudo é a exposição à violência urbana dessas meninas que, nos últimos anos, se tornaram alvos mais frequentes de crimes contra a vida. “Precisamos de uma mudança radical na orientação da nossa política. Apostar e investir na vida, na geração de saúde, na diminuição das desigualdades, e não na política de morte e no encarceramento, que só aumenta a violência”, opina Dillyane.

Por que meninas são mais vulneráveis?

Para a professora do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UNB), Hayeska Barroso, desde cedo as meninas são criadas como mais frágeis. Comportamentos ensinados dentro de casa, como falar baixo, silenciar vontades e não se posicionar, segundo ela, serão reproduzidos também fora do ambiente familiar. “O lugar imposto é o de subalternidade”, diz. Assim, elas acabam expostas à violência e à negligência.

A pesquisa

O estudo do Cedeca compõe uma pesquisa organizada pela organização não governamental Save The Children e deve ser compilado com dados da Guatemala e do Peru. Os resultados foram apresentados em outubro no Comitê de Direitos Humanos da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Pobreza na infância agrava desigualdade de gênero, diz pesquisadora

Para ganhar roupas, sapatos e o caderno da escola, Francineide dos Santos da Silva, 49, teve de começar a trabalhar ainda com 11 anos. Em casa, na cidade de Jaguaribe, interior do Ceará, sua mãe não teria condições de garantir seu acesso aos estudos, já que trabalhava lavando roupas e ainda tinha outros cinco filhos para criar sem ajuda do pai das crianças. Então, Neide precisou fazer o que muitas meninas na mesma situação também fizeram para se manter: realizar trabalhos domésticos em casas de famílias da vizinhança.

Às 5 horas, todos os dias, levantava para começar a cuidar da casa da patroa. Neide seguia lavando roupas e limpando os cômodos até a hora de dar banho na filha da mulher. “O que eu achava mais dificultoso era cuidar da especial [pessoa com deficiência]. Ela era muito violenta, batia muito em mim, eu chorava, ficava com roxo”, relatou. Os cuidados com a jovem tomavam grande parte do dia de Neide, que só depois ia à escola, no período da tarde. Ela morava na casa da família, não tendo direito a folgas no fim de semana ou em feriados.

No colégio, a maioria de suas colegas tinha rotina parecida. Todas trabalhavam desde muito novas. “A gente no interior não tem negócio de cansaço, a gente começa a trabalhar muito cedo. E eu precisava daquela roupa, precisava estudar”, disse. Se tivesse continuado na casa dos pais, Neide acredita que não conseguiria continuar nem até a quarta série, que foi quando parou de ir a escola. Os irmãos também trabalhavam ajudando a mãe a lavar roupas, mas segundo ela, tinham rotina mais tranquila.

A história de Neide, mesmo após mais de 30 anos, ainda é vivida por diversas meninas. De acordo com a Pnad Contínua de 2016, as meninas de 5 a 13 anos do Nordeste dedicam pelo menos 8 horas semanais a trabalhos domésticos, 1,7 hora a mais que meninos da mesma idade. A média da região é a maior do Brasil, que também tem o maior índice de pobreza do País. O dado evidencia, conforme a pesquisa do Cedeca, que “a pobreza não só propulsiona o uso da mão de obra infantil, mas aprofunda, sobretudo, a desigualdade de gênero”.

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