Violações contra crianças são mais comuns nas Regionais 5 e 6, mais pobres de Fortaleza

Centralização de informações permitiu obter dados mais precisos sobre o número de denúncia de violência contra jovens.

Fonte: G1 Ceará (confira notícia na íntegra)

Fortaleza tem falhado no dever de proteger crianças e adolescentes. A conclusão se expressa em números: entre janeiro e 9 de dezembro deste ano, 6.863 denúncias de violações chegaram aos oito Conselhos Tutelares da capital, e 1.501 atendimentos foram realizados. A maior parte das ocorrências foram nas Regionais V e VI – duas das mais pobres da cidade.

As informações são do Sistema para Infância e Adolescência (Sipia), ativado em 2019. No ano passado, o total de denúncias e de atendimentos foi de 29.847, de acordo com dados solicitados dos Conselhos Tutelares e enviados pela Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci).

Antonia Lima, promotora do Ministério Público do Ceará (MPCE), explica que o número deste ano não representa uma diminuição real das denúncias, mas uma organização mais correta delas. “O número alto nem sempre correspondia à realidade, porque a pessoa fazia denúncia no Disque 100, não recebia resultado e fazia novamente por outro canal. Como não era sistematizado, não se identificava que já havia notificação sobre aquela criança. Neste ano, os números são mais reais”, explica.

As questões que formam o pódio das denúncias feitas pela população e dos atendimentos realizados pelos órgãos protetores, de acordo com a Funci, são pedidos de segunda via de certidão de nascimento, orientações sobre o Projeto Primeiro Passo (jovem aprendiz) e reivindicação de vagas escolares. Contudo, 70% das solicitações ainda se referem a violações mais graves. As dez solicitações mais frequentes são:

2ª via de Certidão de Nascimento

Gratuidade para certidão de casamento e orientações sobre Projeto Primeiro Passo

Vaga escolar

Negligência

Violência física

Violência psicológica

Maus-tratos

Conflito familiar

Abuso e violência sexual

Ameaça

Zonas vulneráveis

Negligência, violências física e psicológica, maus-tratos, conflito familiar, abuso e violência sexual e ameaça são a maioria das denúncias. As queixas são coletadas pelos Conselhos de forma presencial, por telefone, via promotoria de Justiça ou por meio do Disque 100, canal nacional de comunicação. Por esse motivo, aponta a Funci, “os Conselhos não possuem números específicos de solicitações/denúncias” por demanda.

Apesar disso, é possível identificar quais regiões de Fortaleza são mais castigadas pela violação de direitos de meninos e meninas. Entre janeiro e dia 9 deste mês, o Conselho Tutelar V – localizado na Avenida Alanis Maria Laurindo), no Bairro Conjunto Ceará – recebeu 3.075 denúncias.

Individualmente, são os bairros das Regionais I e III que encabeçam a lista de maiores demandantes: segundo dados enviados pela Funci, Jóquei Clube, Bonsucesso, João XXIII, Henrique Jorge e Autran Nunes (todos Regional III), além de Jardim Iracema e Vila Velha (ambos Regional I), foram os pontos de Fortaleza que mais concentraram as solicitações relacionadas ao público infantojuvenil.

Para Adriano Leitinho, titular da 3ª Defensoria Pública da Infância e Juventude, o cenário reflete despreparo para efetivar o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Temos uma legislação das mais bonitas e completas no que tange aos direitos fundamentais, mas o ECA está longe de ser realidade. Os próprios conselheiros não têm conhecimento sobre a rede de proteção. É importante que os Conselhos possam lutar para efetivar esses direitos na prática”, frisa o defensor.

Ainda segundo ele, os contextos socioeconômicos favorecem as violências. “Vivenciamos uma problemática de pobreza extrema em Fortaleza, e grande parte advém da falta e da ausência de políticas públicas. Há um ciclo de violências sociais que a criança desenvolve, que precisa ser quebrado para que elas não cheguem a ser abandonadas na rua, em mendicância, sendo alvos fáceis para exploração e uso de drogas. Não adianta cuidar da criança e não de quem cuida”, alerta Adriano.

Outro problema, porém, se esconde atrás das rendas mais altas, como avalia a promotora Antonia Lima. “A violência é uma condição inata do ser humano. O que acontece nos bairros de classe média e alta é que as denúncias não são registradas. A violência psicológica é muito alta, nessa sociedade violenta, autoritária, patriarcal. Quem mais viola os direitos das crianças e adolescentes são as famílias e o entorno delas”, lamenta. “É preciso ampliar a prevenção, aumentar o número de Conselhos e garantir decisões colegiadas entre eles”, destaca.

Ampliação

Eulógio Neto, presidente da Associação dos Conselheiros, ex-Conselheiros Tutelares e Suplentes do Ceará (Acontesce), reforça a necessidade de mais conselhos para dar conta da demanda – já que é dos conselheiros a tarefa de visitar as famílias, escolas e instituições frequentadas pela vítima. “A cada 100 mil habitantes, deve haver um conselho com cinco conselheiros.

Fortaleza deveria ter no mínimo 25 Conselhos Tutelares. Até março do próximo ano, segundo a Prefeitura, serão mais dois, e o déficit continua”, pontua, frisando como exemplo a “sobrecarga” do Conselho V – que atende 21 bairros.

“Ele abrange uma região demográfica de IDH muito baixo, que inclui Bom Jardim, Conjunto Ceará e Genibaú. Há necessidade de pelo menos mais uma unidade ali dentro, é uma demanda muito densa, assim como na Grande Messejana e na Barra do Ceará. Às vezes os crimes só viram notícias quando são gritantes, mas os conselhos estão lotados deles todos os dias”, conclui o presidente da Acontesce.

Para Bruno de Sousa, assessor técnico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), a grande quantidade de denúncias de violações em Fortaleza – em média, são mais de 600 por mês – revela “um afastamento da proteção integral a crianças e adolescentes”.

“É um enfraquecimento das políticas públicas, essencialmente as de prevenção da violência, e das de assistência social e de educação. Isso acaba fazendo com que as violações aumentem, demandando mais da rede de proteção. De um lado, há precarização das políticas; do outro, os desafios da rede para dar conta. A tendência é que as dificuldades aumentem”, analisa.

O G1 solicitou entrevista com algum representante do colegiado dos Conselhos Tutelares de Fortaleza, mas o órgão preferiu não se pronunciar.

Medidas protetivas

De acordo com o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), 241 medidas protetivas de acolhimento de crianças e adolescentes foram determinadas em 2018. Neste ano, já são 205, totalizando 446 no biênio.

Além das unidades em cada Regional, uma sede do Conselho Tutelar realiza atendimento em regime de plantão, das 17h às 8h, de segunda a sexta-feira, e 24 horas por dia aos sábados, domingos e feriados, na Rua João Tomé, 261 – Bairro Monte Castelo. Qualquer pessoa pode procurar o órgão e denunciar situações de suspeita ou confirmação de violações.

Situações de violências sexual e física e abandono de crianças e adolescentes podem ser notificadas também pelos telefones (85) 3238.1828 / (85) 98970.5479, além do Disque 100, que recebe denúncias de forma rápida e anônima e encaminha para os órgãos competentes em até 24 horas.